Ferramentas de inteligência artificial podem gerar ganho de produtividade para as pequenas empresas, mas exigem processos estruturados, controle de qualidade e governança para uso responsável

A inteligência artificial (IA) é hoje o tema tecnológico mais badalado do universo corporativo. A cada semana, novos aplicativos prometem automatizar tarefas, reduzir custos e transformar negócios. Para pequenas e médias empresas (PMEs), pressionadas por margens estreitas e recursos limitados, a promessa é ainda mais tentadora. Afinal, qual empresário não gostaria de contar com uma ferramenta que executa tarefas importantes em questão de segundos?

Se, para você, isso soa quase como um milagre da tecnologia, é melhor suspeitar e assimilar o alerta de quem acompanha essa evolução há décadas. O professor titular do Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador principal do Centro de Inteligência Artificial (C4AI), Marcelo Finger, explica que o atual boom tecnológico em torno das inteligências artificiais generativas, de fato, representa um avanço, mas as expectativas precisam ser calibradas. “A IA não é um milagre e nunca será. Ela amplia produtividade, mas erra, e essas falhas não desaparecem com treinamento”, afirma.

Finger lembra que os chamados modelos de linguagem (a base dos populares chatbots) são essencialmente algoritmos estatísticos que “preveem a próxima palavra”. Com trilhões de parâmetros, produzem textos sofisticados, porém, sem compromisso com a verdade.

O resultado são as famosas “alucinações”: respostas inventadas, mas com aparência convincente, que vão de letras de músicas inexistentes a artigos científicos falsos. “É como ter um estagiário muito talentoso, mas que ocasionalmente comete erros graves. Se não houver revisão humana, o risco é alto”, compara. “A pior decisão é terceirizar completamente o julgamento”, orienta.

O professor esclarece que, para pequenas empresas, os ganhos mais concretos estão em aplicações de produtividade (transcrições, resumos de documentos e chatbots internos) desde que acompanhados de controle de qualidade. Já no campo da IA preditiva, soluções sob medida podem ser ainda mais estratégicas, permitindo, por exemplo, prever falhas de produção ou padrões de consumo com base em dados próprios. No entanto, esse caminho demanda desenvolvimento próprio e profissionais especializados.

Aprender, testar e errar

O autor e fundador da Engrama (consultoria especializada em inovação e transformação digital), Alexandre Del Rey, pontua que o desafio das PMEs é entender a tecnologia e, principalmente, compreender profundamente seus processos para aderir de forma estratégica às novas ferramentas.

Del Rey comenta que o crescimento acelerado da IA veio porque o acesso ficou direto, barato e sem intermediários, o que gerou euforia compreensível, mas perigosa quando vira uso raso. Para ele, o ponto cego para as PMEs está “no como usar”. Sem direção clara, a IA produz conteúdo genérico. Se o prompt, que é o comando fornecido, não contextualiza dados, objetivo e critérios, a resposta será mediana.

A dica de ouro é entender qual ferramenta atende às demandas da organização. Assim como seria um erro usar o Excel para escrever um texto, é um equívoco esperar que um chatbot genérico otimize um processo sem clareza de objetivo, dados de qualidade e testes.

Para isso, muitas vezes, é preciso amadurecer as estratégias de dados. Existem oportunidades que podem estar sendo desperdiçadas por falta de estruturação. Del Rey sugere uma análise estratégica: mapear quais dados importam para decisão (vendas, churn, prazos, defeitos), onde estão (ERP, planilhas, banco, web), como coletá-los automaticamente e que melhorias operacionais podem ser promovidas com essas informações.

Outro risco ignorado é o uso indevido de dados sensíveis. “Boa parte das ferramentas populares coleta os dados fornecidos para treinar seus próprios modelos. Se você compartilha um dado sigiloso, ele pode ser reproduzido em outro contexto, mesmo que não intencionalmente”. Por isso, é necessário entender os termos de uso e buscar alternativas seguras, como soluções locais, privadas ou com controle sobre o uso e descarte de dados.

A adoção da IA também exige decisões sobre investimento. “Há quatro modelos possíveis: desenvolvimento interno, parceria com consultorias para transferência de conhecimento, contratação sob demanda ou uso de soluções SaaS. Todos são viáveis, desde que a decisão seja estratégica”, alerta Del Rey.

Governança e ética

A palestrante, especialista em aplicações de IA para Growth e autora do livro Além do hype: implementando IA com propósito e impacto, Victoria Luz, vem acompanhando os desafios que as PMEs enfrentam na adoção responsável de inteligência artificial. Para ela, os riscos éticos e jurídicos representam uma das maiores preocupações para as organizações.

O viés algorítmico, por exemplo, é um desafio grave, considerando que pequenas empresas frequentemente trabalham com conjuntos de dados limitados. “Quando um algoritmo é treinado com dados que refletem preconceitos históricos ou têm representação insuficiente de determinados grupos, pode perpetuar ou amplificar discriminações”, detalha. Para as empresas, essa situação pode resultar em processos judiciais e multas.

O crescente uso de ferramentas de IA traz ainda a preocupação com a privacidade dos dados. “Muitas PMEs utilizam plataformas de terceiros sem compreender completamente como seus dados e os de seus clientes estão sendo tratados”, observa a autora.

“A falta de transparência nas decisões automatizadas é particularmente problemática quando sistemas de IA operam como caixas pretas”, acrescenta. “Para uma PME, isso significa não conseguir explicar aos clientes por que determinada decisão foi tomada, comprometendo a confiança e potencialmente violando regulamentações que exigem explicabilidade”.

Apesar desses pontos, Luz reitera que a tecnologia gera resultados. “Pesquisas indicam que empresas que investem em IA e automação têm 30% mais chances de aumentar suas eficiências operacionais, mas este benefício deve ser balanceado com responsabilidade social”.

O segredo está em associar a adoção à tecnologia aos diferenciais competitivos. “PMEs que adotam práticas éticas desde o início constroem confiança com clientes, atraem parceiros alinhados em valores, e se antecipam a regulamentações futuras”, aponta.

Boas práticas na adoção de IA generativa

Ao adotar a inteligência artificial (IA), é preciso olhar para os próximos passos. Na visão da autora Victoria Luz, o futuro virá acompanhado da necessidade de diferenciação e isso não diz respeito apenas à tecnologia.

A forma responsável como ela é utilizada será determinante para construir marcas sólidas, resilientes e competitivas. “Comecem pequeno, mas comecem certo. É melhor implementar uma solução simples de forma ética e transparente do que uma solução sofisticada que comprometa valores fundamentais”, ensina.

Como transformar a IA em diferencial competitivo

1. Institua supervisão humana em decisões críticas, modelo conhecido como “human-in-the-loop”.
2. Evite o viés algorítmico, realizando testes regulares de viés e impacto.
3. Estabeleça métricas que incluam não apenas eficiência, mas também equidade e transparência.
4. Crie processos de feedback contínuo com stakeholders.