Trabalho remoto, redução da jornada ou liberdade na escolha dos benefícios não tornam uma empresa flexível. Para isso, é preciso promover uma mudança cultural e adaptar a organização à nova realidade
As relações de trabalho passam por uma transição que tem sido determinada, entre outros fatores, pela capacidade de flexibilização das empresas. Por trás desse contexto, há a busca legítima dos colaboradores por um maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional.
Em contrapartida, as organizações têm sido demandadas a promover mudanças significativas num ritmo cada vez mais acelerado. Diante da dificuldade de atrair e reter talentos, consideram incorporar novidades atrativas, como o sistema de home office ou a jornada reduzida. Mas o esforço pode não gerar os resultados desejados se isso não for bem estruturado. De qualquer maneira, é fundamental entender a importância da flexibilidade, pois ela já está moldando o futuro das relações de trabalho.
Mais do que modismo
“A flexibilização é hoje um fator crítico de sucesso de toda organização”, afirma o professor da FIA Business School, André Fischer. “Na verdade, é uma característica inerente à vida de todos nós na atualidade. Para o bem e para o mal, a vida conectada é flexível e não há como evitar isso”. Inevitavelmente, essa tendência se reflete nas relações de trabalho.
Para Fischer, “flexibilidade significa ter espaço e estar apto a mudar as formas de proceder no trabalho dependendo da situação que se apresenta”. Trata-se de um conceito relacionado com questões decisivas para o futuro das empresas, como “inovação, autonomia e prontidão das pessoas e da organização para enfrentar o novo”.
Muitas vezes, as dimensões dessa questão são observadas superficialmente pelas empresas. Uma situação que tem sido comum é a recusa de candidatos às vagas de emprego integralmente presenciais. O risco de olhar para esse ponto apenas como uma mudança no formato de trabalho é ignorar a necessária adequação da cultura organizacional.
“O desafio é antes de tudo cultural”, avalia Fischer. “Vale lembrar, os líderes só são líderes porque são exemplos de uma cultura. Assim, se a empresa deseja implementar um trabalho flexível, ela precisa, em primeiro lugar, convencer a sua liderança. E isso não é fácil, porque flexibilizar significa, entre outras coisas, distribuir mais o poder”.
O professor destaca que, nas atividades desempenhadas a distância, “as pessoas assumem o poder sobre o seu ritmo de trabalho, seus horários e como equacionar a vida particular com as entregas sobre as quais é responsável”. Na prática, nem todas as empresas e nem todos os profissionais estão preparados para isso.
“As pessoas foram orientadas por anos seguidos a serem cobradas pelo tempo de trabalho, e não pelos resultados e pela qualidade que apresentam. Isto está sendo recodificado”, esclarece. “Para os mais jovens e profissionais com melhores formações, essa ideologia já é uma realidade; para aqueles que estão no mercado de trabalho há mais tempo, será necessário um período de adaptação”.
Como mudança cultural, a flexibilidade está ao alcance de qualquer empresa, incluindo aquelas nas quais as atividades presenciais são predominantes, como o comércio físico. “Nestes casos, as organizações podem utilizar outras formas de flexibilização, tais como a rotação funcional (fazer com que as pessoas atuem em diferentes posições na mesma empresa e adquiram múltiplas habilidades), a criação de grupos semiautônomos que atuam em produtos ou áreas específicas com metas e bônus determinados para todas as equipes. Os projetos baseados em metodologias ágeis são também uma forma de flexibilização do trabalho”.
O importante é que, antes de qualquer ação, os gestores façam uma avaliação crítica, considerando o papel da flexibilização na estratégia de negócio. “Sua empresa enfrentará desafios que não serão superados com os modelos de trabalho que adota atualmente? As lideranças e as pessoas terão que estar aptas a lidar com situações que demandarão autonomia? O mercado exigirá inovação e agilidade? Se as respostas forem positivas, o rumo em direção de arranjos mais flexíveis de trabalho é inevitável”, pondera Fischer.
Resposta aos desafios atuais
Além de uma tendência, a flexibilidade pode ser a resposta para situações desafiadoras que as empresas já estão enfrentando. “Hoje, os temas principais da área de Recursos Humanos são as doenças psicológicas derivadas do trabalho, como o burnout, estresse, depressão. São doenças que correspondem à segunda maior causa de afastamento do trabalho – só perdem para os acidentes”, analisa o presidente da Associação Brasileira de Profissionais de RH (AAPSA), Rodrigo Caseiro.
“Outro problema que todas as empresas enfrentam, independentemente do porte e do segmento, é a falta de engajamento dos colaboradores. As pessoas têm pedido demissão em um volume maior do que a gente historicamente presenciou; as empresas estão com dificuldade de atrair e reter talentos”, acrescenta. “A flexibilidade é uma forma de alterar esses cenários”.
Caseiro reconhece a flexibilização como uma tendência irreversível. Os caminhos para a adoção de formatos alinhados a essa nova perspectiva já existem, inclusive do ponto de vista legal. O presidente da AAPSA cita a reforma trabalhista, que desde 2017 já assegura condições para ajustes, e a segurança jurídica, para a concessão de benefícios flexíveis. “O maior desafio é cultural”, frisa.
A mudança de cultura passa, necessariamente, pelos líderes. “A liderança precisa estar preparada para gerenciar não pela presença física, mas voltar os olhos mais para os resultados. Ao invés de se voltar para o controle de jornada ou de horário e absenteísmo, o que precisa observar são as métricas, para que o trabalho se torne flexível, mas que a produtividade aumente”.
Outros desafios envolvem a necessidade de comunicação clara e transparente. “Precisa ser olhada a questão do isolamento social”, continua Caseiro. “O colaborador em atividade remota pode se sentir desconectado da cultura e das decisões tomadas no dia a dia. Mas, para tudo isso, existem remédios, ferramentas. A tecnologia hoje consegue entregar muito em termos de conexão, conferência e ambiente de dados”. A questão central é alinhar todas as pontas para que a organização se torne flexível a ponto de conseguir se adaptar rapidamente a esta e às próximas mudanças.