O STJ criminalizou um caso de falta de pagamento de ICMS declarado e abriu um precedente judicial, com impacto direto sobre os administradores de empresas. Como se precaver diante desse cenário é o que explicaremos a seguir.
Após serem denunciados pelo Ministério Público de Santa Catarina por deixar de recolher, no prazo legal, o valor do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), dois empresários buscavam a concessão de um habeas corpus. Em 22 de agosto de 2018, mais de um ano depois do início do julgamento, veio a sentença: o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o pedido, por considerar a prática como apropriação indébita tributária. Para a Corte, o fato de os contribuintes terem deixado de pagar ICMS, ainda que o declarando ao fisco, caracterizou um crime, passível de pena de seis meses a dois anos de detenção, além de multa.
“Antes da orientação do STJ, a consequência de não pagar o tributo declarado era tornar-se inadimplente e sofrer a incidência de multa moratória, que varia de 20% a 50% na maioria dos Estados”, comenta o advogado tributarista do escritório Silva & Silva Advogados Associados, Kim Augusto Zanoni. O ICMS é um imposto estadual devido pelas empresas nas operações de venda e revenda de mercadorias, assim como na prestação de alguns serviços – transporte rodoviário intermunicipal ou interestadual e fornecimento de energia elétrica são alguns deles. O cálculo é feito sobre o valor da mercadoria ou serviço e a alíquota varia por Estado. Ao vender uma mercadoria ou ao prestar um serviço, a empresa deve fazer o lançamento tributário, quando apura e informa ao fisco quantas e quais operações realizou. “Com base nessa declaração, a empresa é obrigada a desembolsar mensalmente o valor do tributo que ela mesma declarou”, explica Zanoni.
A base da decisão da corte foi o entendimento de que o valor do tributo é cobrado do consumidor – e aparece na nota fiscal do produto nas operações em que há incidência do ICMS –, por isso, o fato de o comerciante não o haver repassado para os cofres públicos deve ser considerado crime de apropriação indébita, previsto no artigo 2°, inciso II, da Lei Federal n° 8.137/90. Para o relator do caso, o ministro Rogerio Schietti Cruz, criminalizar o atraso no pagamento do tributo é uma forma de desestimular o empresariado a valer-se dessa estratégia – deixar de pagar os impostos – em vez de pedir empréstimos no sistema financeiro.
Veredito controverso
Na opinião do vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), Roberto Mateus Ordine, há um excesso de rigor na decisão. “Não é porque o ICMS está destacado na nota fiscal que ele foi cobrado do consumidor”, argumenta. Ele esclarece que a carga fiscal apontada no documento é a composição do preço da mercadoria a partir dos custos de sua produção. Ainda que se trate de um imposto que permite a transferência do ônus financeiro ao consumidor final, ele não será cobrado pelo pagamento do tributo, que tem como único contribuinte a empresa que realiza a operação relativa à circulação de mercadorias e serviços. “O empresário paga o ICMS sobre o lucro, ele não está ficando com o dinheiro do consumidor. É diferente da situação de descontar o INSS dos funcionários e reter o dinheiro para si. E a decisão trata as duas práticas da mesma forma”, critica Ordine.
O sócio do escritório Perlman, Vidigal e Godoy Advogados, Matheus Bueno de Oliveira, afirma que a posição fere o artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal, que veda a pena de prisão por mera dívida. “Na prática, sob esse prisma adotado pelo STJ, qualquer atraso de pagamento de tributo poderia configurar o crime de apropriação indébita, o que resultaria na prática de milhões de atos criminosos”, defende Oliveira. A advogada do mesmo escritório, Ariana Oliveira Avansini, levanta também a hipótese de o empresário ficar com receio de argumentar com o fisco, em qualquer caso de inadimplência fiscal, para não se expor penalmente. “A decisão, indiretamente, fere o direito de defesa do contribuinte”, pondera.
O que esperar a partir de agora
Em razão da crise econômica, usar o ICMS – deixando de recolhê-lo ou recolhendo-o parcialmente – para quitar as obrigações imediatas do negócio, como pagar fornecedores e funcionários, pode parecer uma boa opção. Mas é preciso ter em mente que a fiscalização fazendária e do Ministério Público, a partir da decisão do STJ, tende a ficar ainda mais intensa. “É uma posição importante, porque o STJ é a última instância que decide a respeito da interpretação da lei federal. Mais do que isso, a decisão foi dada pela terceira seção, que é o órgão do STJ que reúne a quinta e a sexta turmas, que tratam de direito penal. Ou seja, trata-se de jurisprudência uniformizada e que, embora não obrigatória, deve passar a ser aplicada como regra por todos os tribunais abaixo do STJ, salvo exceções ou posicionamentos individuais de juízes”, diz Zanoni.
Por isso, a gestão financeira do negócio deve sempre mirar no ponto de equilíbrio, para possibilitar o recolhimento de todos os tributos, sem prejuízo para as demais despesas. O controle de gastos deve ser uma política constante, para que a empresa esteja apta a enfrentar as inevitáveis crises cíclicas.
BOX: ICMS na cadeia produtiva
Na linha de produção que leva um item até o consumidor final, cada empresa (exceto as que recolhem o imposto dentro do Simples Nacional) paga por uma parte do tributo, em um sistema conhecido como “crédito e débito”. Veja como isso funciona, na prática:
- A empresa X, de São Paulo, vende um produto por R$ 1 mil à empresa Y, do mesmo Estado. X deverá pagar R$ 180 de ICMS (18% sobre R$ 1 mil).
- A empresa Y, que adquiriu a mercadoria por R$ 1 mil, vai vendê-la para a empresa Z por R$ 2 mil. O ICMS gerado por essa venda é de R$ 360 (18% sobre R$ 2 mil). Porém, pelo sistema não cumulativo, a empresa adquiriu o crédito pago pela empresa X, de R$ 180, portanto, pagará apenas a diferença do valor, que é de R$ 180.
- Ao vender para o cliente final por R$ 3 mil, a empresa Z gerou um ICMS de R$ 540 (18% de R$ 3 mil). Mas com os créditos de R$ 180 + R$ 180 gerados pelas empresas das etapas anteriores, Z só deverá recolher R$ 180.